A venda de um adolescente escravizado em Gengibre (Belém/Paraíba) no período do Segundo Reinado
João. Esse era o nome de um adolescente escravizado, morador do povoado de Gengibre, atual cidade de Belém, no Agreste paraibano, citado numa Procuração datada de 22 de julho de 1878 - uma década antes da abolição oficial da escravidão no Brasil -, autorizando sua venda através de um grupo de negociantes de escravizados.
A Procuração divulgada no livro “Documentos Cartoriais do
Brasil Império. Escrituras da Vila da Independência-PB”, de autoria de Antonieta
Buriti de Souza Hosokawa, publicado pela editora Blucher, em 2019, mostra uma
das facetas do cruel período escravocrata brasileiro, durante o qual a
população negra escravizada era tratada como mercadoria.
De acordo com o documento, João era um adolescente de 14 anos
de idade, pardo (pretos e pardos são considerados negros), solteiro, morador de
Gengibre, do “serviço do campo”, matriculado aos 8 anos de idade na Coletoria
da Vila da Independência, atual cidade de Guarabira, sob o número 1.494, como
escravizado do Capitão Miguel Archanjo Guedes Alconforado.
O documento escrito no Cartório do Tabelião João Maria dos
Santos, na Vila da Independência, outorgando (concedendo) a venda do escravo
de Miguel Archanjo Guedes, começa da seguinte forma:
“Imperio do Brasil. Provincia da Parahyba do Norte.
Procuração bastante que faz em notas o Capitão Miguel Archanjo Guedes
Alcanforado.
Saibão quantos este publico instrumento de procuração
bastante virem que sendo no Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de
mil oito centos setenta e oito, aos vinte dous dias do mez de Julho do dito
anno, nesta Villa e Comarca da Independencia, em meu Cartorio perante mim
Tabellião compareceu o Capitão Miguel Archanjo Guedes Alcanforado morador no
Gengibre Destricto da Povoação de Belem deste Termo, reconhecido pelo proprio
de que faço menção, e das testemunhas abaixo assignadas, perante as quais por
elle foi dito que por este publico instrumento elle outhorgante fasia seus
bastantes Procuradores João Evangelista de Souza morador na Povoação de Cuité deste
Termo, Mello e Companhia, Pires e Companhia, e Castro Irmão e Companhia
negociantes estabelecidos e moradores na Capital desta Província [da Parahyba
do Norte], e Victorino Pinto de Sá Passos e Companhia, negociante estabelecido
e morador no Rio de Janeiro [...] os necessarios poderes para venderem em qual
quer parte deste Imperio a quem lhes convier o seu Escravo delle outhorgante de
nome João” (grafia da época).
O corpo do escravizado João, portanto, passava agora a ser
mercadoria para os negociantes citados acima, os quais se comprometiam “a
fazerem esta venda firme e valioza com as clausulas da lei; [...] concernente
ao objecto do prezente instrumento, [...] ficando-lhes toda via os mesmos
poderes em seu inteiro vigor”, expressões que demonstram a objetificação da
pessoa humana e a provável rentabilidade do “negócio”, por se tratar de um jovem
escravizado com pleno vigor físico.
O referido documento cartorial termina informando o valor pago pela Procuração e as testemunhas que a assinaram:
“Esta procuração pagou de direitos Provinciaes na Estação competente, a quantia de vinte cinco mil reis, cujo conhecimento fica em meu poder e Cartorio. Em fé e testemunho de verdade assim o disse e outhorgou, e sendo-lhe esta lida e achando-a conforme, assignou com as testemunhas prezentes de mim conhecidas e moradoras nesta Villa. [...] Escrevi e assigno. Em fé e testemunho de verdade João Maria dos Santos. O Tabeliam Publico Provisorio João Maria dos Santos.
Miguel Arcanjo Guedes Alcanforado
Antonio Joze da Costa Mattos
Laudelino Lopes d’Albuquerque”
Vale ressaltar que o adolescente João era um dos escravizados de propriedade do Capitão Miguel Archanjo Guedes, na povoação de Gengibre (Belém), pois, em 1867, onze anos antes da procuração autorizando a venda de João, outro escravizado, de nome Guilherme, foi mencionado em outra fonte escrita, o jornal paraibano O Publicador, sobre uma casa que ele teria incendiado (clique aqui), conforme descreveu uma nota do jornal:
"Repartição da policia.
Dezembro 9.
No dia 2 do corrente no lugar Gingibre, termo da
Independencia, Guilherme, escravo de Miguel Archanjo Guedes incendiou a casa de
Manoel Cesario, sendo consummido pelas chamas tudo quanto existia dentro della,
bem como uma criança.
Deram-se providencias sobre o processo."
Não se sabe se o ocorrido foi a mando do dono do escravo, se
foi um ato de vingança individual ou de resistência. Todas as possibilidades
são possíveis diante da sociedade escravagista da época, com suas intrigas,
disputas pelo poder e repressão violenta, geradores de mais violência.
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O livro “Documentos Cartoriais do Brasil Império. Escrituras
da Vila da Independência-PB”, de autoria de Antonieta Buriti de Souza Hosokawa,
pode ser baixado, gratuitamente, no site da editora Blucher.
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