Eunício Precílio Cavalcante, o belenense Capitão da Marinha que enfrentou a ditadura militar
Nascido em 15 de dezembro de
1932, no então distrito de Belém de Caiçara, Precílio Cavalcante, hoje com 92
anos de idade e residente na cidade do Rio de Janeiro, tem uma importante
história de luta e resistência contra as arbitrariedades da ditadura militar,
que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 a 1985.
“Sou paraibano, nordestino, portanto, tenho na curiosidade a minha
principal característica. Nasci em Belém de Caiçara, um pequeno povoado do
estado, hoje cidade. E por isso costumo dizer que fui uma criança pobrezinha
que nasceu em Belém”, escreveu Precílio no perfil de seu blog.
Prosseguindo na descrição de sua
biografia, E.P. Cavalcante, hoje oficial reformado da Marinha, destaca sua
trajetória de menino pobre em Belém até ingressar nos quadros da Marinha
brasileira em 1950:
“Nasci no campo, filho de camponês sem-terra. Meus pais trabalhavam em
sistema de meia, ou seja, o dono da terra ficava com a metade de tudo que nós
produzíamos. Plantávamos principalmente algodão, milho e feijão. Comecei a
trabalhar na terra com seis anos, no plantio da mandioca.
[...]
Em 1941, fomos para Várzea, em Tacima, no município de Araruna. Foi lá
que pisei pela primeira vez numa escola, na fazenda de Oswaldo Trigueiro, tinha
então nove anos. Onde estudei três anos. Isso tudo está localizado na Região da
Caatinga, entre o Brejo e o Sertão da Paraíba.
Saímos de lá para Santa Luzia do Sabugi, para cultivar algodão.
Acabando o plantio, fomos trabalhar na mineração de xelita, onde ficamos por
dois anos, retornando depois para o Brejo, distrito de Nova Cruz, de novo no
Rio Grande [do Norte]. Lá “morejávamos” nas terras de um tal Antônio Trajano,
pequeno agricultor. Foi o último lugar onde vivi, antes de ir para Natal. Fora
das capitais não havia oportunidade de emprego regular. Nesta época eu já
pensava em me alistar na Marinha.
Na Marinha porque pagava melhor e era uma carreira, enquanto o Exército
era só servir e ir embora, para as camadas que começavam por baixo. Nunca
voltei a minha cidade natal. O mais perto da Paraíba que eu fui depois, foi a
Feira de São Cristóvão [feira de tradições nordestinas realizada na cidade do
Rio de Janeiro]. Não consegui manter contato com mais ninguém da
“pré-história”, antes da Marinha, que ingressei em 1950.
Servi no Encouraçado Minas Gerais (ô que, em 1910, participou da
Revolta da Chibata), também no Cruzador Barrozo (onde estive de prontidão no
dia e noite da morte do Getúlio), no navio Alte. Frontain - um navio auxiliar.
Também fui instrutor no Centro de Instruções do Corpo de Fuzileiros Navais
(CICFN, do Bananal, na Ilha do Governador).”
“Alfabetizado aos oito anos, em casa, pela mãe, com a supervisão da avó
materna, dona Maria do Rosário. Em pouco tempo tornou-se leitor obsessivo. Lia
tudo o que caísse nas mãos. Porém dois tipos de leitura, em especial, marcaram
e aguçaram a sua vontade de viajar nas asas da aventura e da ficção, a
literatura de cordel e a revista Em Guarda em Defesa da América. [...] Conheceu
as agruras da vida do retirante como a família retratada em “Vidas Secas”, por
Graciliano Ramos. Aos 16 anos ingressou na Marinha de Guerra, candidato a
aprendiz de marinheiro, tornando-se fuzileiro naval aos 17 anos.
Continuou lendo muito, mas logo avisaram: “Olha, isto aqui, a Marinha, não é um bom lugar para pessoas dadas à leitura!”, em tom de advertência. Descobriu, naquele momento, que o militar de carreira não tem vida privada. É sempre vigiado, e não pode ter opinião própria, independente, sobre política, vida social, entre outras. Esta advertência lhe abriu os olhos para mais uma verdade: o livro é a coisa mais subversiva que o homem criou!”, descreve a editora sobre a biografia do autor.
“Anteriormente ao golpe, fiz parte do PNA (Programa de Nacional de
Alfabetização) promovido em 1963 pelo Presidente João Goulart e dirigido pelo
Prof. Paulo Freire. Eu, e inúmeros sargentos do corpo de fuzileiros, nos
colocamos como voluntários e fomos alfabetizar camponeses.”
Tal conhecimento e leitura de
mundo adquiridos por ter amor aos livros, como destaca em seu perfil, embasaram
sua visão patriótica, democrática e humanista que se confrontou com o abuso de
poder perpetrado por setores militares contrários a governos civis e populares.
“Eu fiz todos os cursos que eram oferecidos pela Marinha, enquanto lá
estive. Acontece que eu, desde cedo, tive amor aos livros. E como eu lia muito,
passei a ser notado. Em 1956, encontrei a “minha turma”, quando criamos um
grupo de sargentos interessados em estudos sobre as questões nacionais. Esse
grupo passou a ser um grupo de luta pela democracia a partir da renúncia de
Jânio Quadros e da tentativa por parte dos Ministros Militares em impedir a
posse de João Goulart. Nosso grupo se posicionou a favor da legalidade, ou
seja, da posse do vice-presidente, como mandava a Constituição”, destacou
Precílio.
A propósito do presidente João Goulart, o Jango, deposto pelo golpe de 1964, Precílio Cavalcante afirma que a maioria dos militares era contrária ao golpe militar perpetrado pelo alto comando das forças armadas com o apoio da elite econômica:
"Escrevi o livro [Mergulho no Inferno: Relatório sobre as torturas
no Brasil] diante da necessidade de alguns companheiros de dizer alguma coisa
sobre o período que vivemos. Nós, militares, fomos pouco conhecidos por
lutarmos contra a truculência nos quarteis. Os sargentos marinheiros lutavam
desesperadamente para barrar o golpe". [...] O João Goulart foi deposto
pelo alto comando militar, não pelas forças armadas, como dizem. A maioria dos
subalternos era a favor de Jango. Já no alto comando não chegava a ter 1% que
defendesse o governo", disse em entrevista ao blog Emissora QCN
(Disponível em:
https://emissoraqcn.blogspot.com/2014/05/me-acusavam-de-comunista-por-ler-livros.html)
Por esse posicionamento democrático e legalista, o militar Eunício Precílio Cavalcante pagou um alto preço em sua carreira na Marinha do Brasil. Com o golpe militar de 1964, ele e mais três sargentos foram expulsos e presos por serem “prejudiciais à ordem pública”, como noticiou o Jornal do Brasil, datado de 24 de abril de 1964:
“Expulsos 4 sargentos “prejudiciais à ordem”.
O Ministro da Marinha, Almirante Melo Batista, expulsou ontem quatro
sargentos do Corpo de Fuzileiros Navais acusados de “se terem tornado
prejudiciais à ordem pública e à disciplina militar.” Ao aplicar a punição, o
Ministro invocou os Artigos 91 e 36 do Estatuto dos Militares, combinados com o
Artigo 7° do Ato Institucional.
Os Sargentos, que estavam ligados ao Deputado Leonel Brizola e ao
Almirante Cândido Aragão, segundo ficou apurado em inquéritos que correm
sigilosamente na Marinha, estão presos no navio Ari Parreiras, e ali
continuarão até o final, a fim de responder por ação penal.
Os sargentos expulsos são: 1.º sargento
Luís Dantas Pimenta, 2.º sargento
Eunício Precílio Cavalcanti, 2.º sargento Raimundo Lopes Damasceno e 3.º
sargento Narciso Júlio Gonçalves.”
Sobre esse episódio noticiado no
Jornal do Brasil, Precílio Cavalcante descreveu em seu perfil nos seguintes
termos:
“[...] fomos uns dos primeiros a sermos presos, em 05 de abril de 1964.
E cassados, no Ato Institucional (o primeiro, que na época parecia que seria o
único, mas não foi).
Fui preso no dia cinco porque no dia primeiro de abril eu, entre
outros, havíamos fugido. Acreditávamos na existência de núcleos de resistência,
com os quais pretendíamos nos juntar. Mas não houve. Então, para não piorar a
situação, achamos melhor retornar e responder aos inquéritos, visto que
estávamos defendendo a Constituição e a legalidade.
Mal entrei no quartel fui preso e enviado para o CENIMAR [Centro de Informações da Marinha]. E de lá
pulamos de porão em porão de navios: no navio de guerra Ary Parreira, no
Princesa Leopoldina, no Custódio de Melo. Um mês e pouco na Ilha das Flores,
Niterói, e vários nos navios indo, uma vez por semana, para a Escola Naval,
para recebermos visitas.
[...]
Em final de 1964, ainda respondendo a processo na Auditoria da Marinha,
me soltaram. Nestas circunstâncias é que eu entrei para a clandestinidade, indo
vivê-la em São Paulo.”
De acordo com a matéria do blog
do jornalista Mário Magalhães, Precílio, que também era membro da ALN, não se
intimidou e desafiou o delegado Fleury, que revidou com socos e pontapés.
Abaixo, trechos da matéria com o
título “Preso político que desafiou o delegado Fleury lança livro sobre tortura”:
“Os presos superlotavam as celas e engarrafavam os corredores. Um deles
era o paraibano Eunício Precílio Cavalcante, segundo-sargento do Corpo de
Fuzileiros Navais expulso da Marinha em 1964. Era um dos raríssimos
companheiros que Marighella levara no Rio à casa e terreiro de Antônia Sento
Sé.
Fleury provocou o militante da ALN: 'Cadê o Marighella?'
'Você não é macho? Vá buscar!', desafiou o revolucionário.
Rose Nogueira testemunhou os socos e pontapés que o delegado desferiu
no homem indefeso, gritando:
'Pois eu vou mesmo! Hoje é o último dia do Marighella!'
[...]
Logo depois da agressão a Cavalcante, Fleury participou do assassinato
de Marighella: ao menos 29 policiais armados até os dentes fuzilaram um homem
cercado e desarmado, o guerrilheiro não portava nem um canivete.
Eunício Precílio Cavalcante viveu aqueles dias ferozes, desafiou o
facínora, mergulhou no inferno e sobreviveu para contar.” (Disponível em: https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/05/25/preso-politico-que-desafiou-o-delegado-fleury-lanca-livro-sobre-tortura/)
“Fui preso em São Paulo no dia 4 de novembro de 1969, no mesmo dia em que assassinaram Carlos Mariguella. Nós fomos presos pela manhã e depois fomos torturados. Eu fui torturado 15 dias depois porque mantive uma historinha. Todo resistente que está lutando na clandestinidade tem que manter uma história, e a minha história de que eu era vendedor de livros era coerente. Só que 15 dias depois caiu um companheiro em Ribeirão Preto, que disse que eu não era nada de inocente, que eu participava da ALN (Ação Libertadora Nacional) e que eu fornecia armas para ele. Era a minha palavra contra a dele. Nós dois fomos torturados barbaramente pela equipe do delegado Sérgio Fleury, agentes da Marinha, agentes do Cenimar (Centro de Informações da Marinha).” (Disponível em: https://vermelho.org.br/2014/06/06/reflexoes-sobre-a-violencia/)
Três anos antes, o jornal Correio da Manhã (RJ), edição do dia 20 de abril de 1966, noticiava a prisão arbitrária, pela Marinha, do então sargento Eunício Precílio Cavalcante, e de outros militares e civis, “sem dar quaisquer explicações”, ocorrida após invadirem sua residência e levá-lo para local desconhecido dos familiares:
“Sem dar quaisquer explicações, dois oficias da Marinha de Guerra e dois marinheiros, armados, invadiram na manhã de ontem a residência do sargento Eunício Precílio Cavalcanti, na Ilha do Governador, levando-o preso para local não revelado. Além de Eunício foram presos, também na ilha, outro sargento, de nome Veloso, os proprietários da Loja Bitú, sr. Luiz Bitú e senhora, e o estudante universitário Benvindo.”
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